[Continuação do conto Um dia de Cão, clique aqui e leia a parte I]
O incomodo som da panela batendo em seu crânio se repetia infinitamente acompanhado de um zumbido e dos choros vindos de algum lugar onde ele estava, compunham uma sinfonia terrível.
O incomodo som da panela batendo em seu crânio se repetia infinitamente acompanhado de um zumbido e dos choros vindos de algum lugar onde ele estava, compunham uma sinfonia terrível.
Cão abriu os olhos, a dor de cabeça era sofrível, o cheiro e gosto de sangue estava em sua boca, dando uma reconfortante sensação. Olhou em volta, era um quarto barato de puteiro, poucos móveis, cama, uma TV, provavelmente com canais de sacanagem, só que sem a puta. O choro continuava, Cão olhou, no canto do quarto, quase embaixo da cama estava Denize, seu rosto inchado, e boca sangrando. Não precisava nem perguntar, ela havia apanhado.
Cão se levantou, a luz no ambiente era pouca e incandescente, parecendo luz de vela, era um puteiro afinal, isso compunha o “ambiente”, foi até a porta, obviamente trancada, e foi à pequena janela, via o lado de fora, deu um forte soco, e nada, estava preparada com magia, é impossível de quebrar. Se voltou então até uma penteadeira, que junto com a cama de casal, o criado mudo e a garota encostada no canto da sala compunham a mobília local. olhou seu rosto no espelho, se assustou, o sangue descia pela sua testa, se misturava com o sangue que escorria do nariz, cobria seus olhos e inundava a boca, mantendo constante o delicioso gosto ferroso, pelo visto não foi só uma panelada que ele havia levado. Ainda bem que apagou na primeira. Balançou a cabeça, se lembrando como tinha vindo parar nessa furada.
- Tudo por causa de um maldito café! - Disse baixinho para ninguém - Culpa do maldito café.
Cão abaixou-se, levantou a perna da calça, pegou uma pistola prateada e uma adaga trabalhada, ambas guardadas em pequenos coldres nas pernas. Chacoalhou a cabeça afastando os pensamento, respirou fundo bem devagar.
- Agora, vamos pegar aquele puto e aquela vadia! - Rosnou com paixão e fúria, sentimentos evocados também pelo sangue que avermelhava seus dentes. - Levanta daí menina, temos uma outra pirralha para salvar. Ei, cade a minha jaqueta? - Denize fez que não com a cabeça, havia sangue na camiseta e em suas mãos.
- O que eles fizeram com você? - A voz soou suave e preocupada.
Denize não parava de chorar e soluçar, ela tentava falar algo, mas sem sucesso. Cão até tentou entender, mas deixou de lado e limitou-se a pensar em pegar quem fez isso com ela, e fazer o filha-da-puta pagar, era simples, levantar, caçar, encontrar, bater. Simples assim. Conferiu as balas da pistola automática, prata nesse cartucho e ferro frio no reserva, trocou. Os desgraçados que fizeram isso com ela não merecem morrer com prata.
Cão chutou a porta, mais vezes do que achou que seria necessário para sair, olhou no corredor, pegou Denize pelo braço e saiu a passos rápidos.
- Sabe onde esta a sua irmã?
A garota fez que sim em um gesto silencioso tentando manter o autocontrole. Enquanto limpava as lágrimas e o nariz nos braços.
Seguiram entre os quartos e corredores do prostíbulo que realmente era bem maior por dentro que por fora. Cão pensou que isso seria um grande problema para sair.
Uma verdade sobre puteiros e botecos é que são todos diferentes, mas esteja onde estiver, sempre terá a impressão de estar no mesmo. Nesse não era assim. Conforme corria com Denize indicando o caminho, o cheiro e o ar do ambiente mudava do habitual, aroma de cândida, prazer e decadência, para algo estranhamente familiar, era cheiro de profano. Chegou à conclusão de que provavelmente precisaria das balas de prata, e talvez, muito mais.
Viraram um corredor, e deram de cara com uma porta com uma folha de sulfite colada com fita crepe escrito "Administração", Denize chorava, soluçava e tremia muito mais do que já chorou, soluçou ou tremeu antes, quase o triplo disso. Ela se jogou no chão, e continuava a chorar, soluçar e tremer encolhendo-se próxima da porta, enquanto apontava para a porta, demonstrando ser ali que Daisy estava. Cão apontou a arma para a fechadura, ponderou sobre a bala que iria gastar, resolveu chutar, mas antes tentou girar a maçaneta. Ela abriu.
O quarto era comum, muito semelhante ao outro em que estava preso, a luz era incandecente, a cor era a mesma, como se fosse luz de vela, tinha mais móveis, e na cama, pelo menos doze mulheres nuas se abraçando e se lambendo enquanto abraçavam e lambiam o único homem entre elas, um cara forte, na casa dos 30, com um curto cavanhaque, vestindo calça social e uma camisa branca aberta, e que apesar os abraços e lambidas permanecia impecavelmente limpa e esticada, era um sujeito bonito, muito acima dos padrões humanos, mas Cão via aquilo que os humanos não podiam, e agradeceu por não ter gasto a bala na maçaneta, com certeza absoluta iria precisar dela, e de muito mais. Cão via o grande par de chifres saindo da testa do homem. Era um demônio, merda, tinha que ser o filha-da-puta de um demônio! Cão fez a cara que alguém que perde na mega-sena em um acumulado de 36 milhões, por um único numero, e ainda um numero que é a data de aniversário da esposa, o fim do telefone do melhor amigo ou o número da casa, provavelmente fariam.
- Valentino suponho - disse Cão em tom de bravata, falsa é claro.
O chifrudo se levantou caminhando lentamente até Cão, que voltou seus olhos para a cama, três garotas das que se lambiam inclusive a mulher-dos-peitos-de-dezenove-e-meio estavam com pequenos chifres, e longas caldas, eram succubos. Três succubus adultas e um demônio, A coisa só melhorava.
- Maldito café... - sussurrou para sí mesmo - Vim buscar a garota Daisy - Olhou por cima do ombro, Denize estava quase convulsionando de desespero, agora ele entendia o porquê, e também a origem do cheiro de profano.
- Há, você quer a garotinha abridora? - disse Valentino com uma voz poderosa e olhar felino extremamente incômodo – E o que pode me oferecer... – Olhou Cão fixamente – Senhor Cão.
- Abridora? ela é uma abridora? - Isso explica como Denize entrou na Taverna do Bardo. Eram Abridoras, jovens Abridoras, e unidas por um pacto de sangue, juntas o poder deve ficar ainda maior, e futuramente... - Puta-merda - deixou escapar o pensamento.
- Exatamente - Concluiu o chifrudo Valentino, que agora estava parado a pouco mais de um metro de Cão, olhando-o.
Cão levou a mão ao rosto, massageando a lateral da testa, a dor da pancada ainda esta lá, e o rumo recente que a situação tomava não era lá muito agradável. Fuçou nas suas memórias, como era mesmo o Rituale Romanum? não conseguia se lembrar.
- Acho que você não ta afim de me entregar a pirralha certo?
- Não, Não estou. - Disse passível, em tom forte e grave, quase como um trovão.
- E nem vai me deixar sair daqui com a chorona que eu trouxe né?
- Não, Não vou.
Cão olhou para a arma com balas de ferro frio, se arrependeu de não estar com as balas de prata, elas não matariam, mas talvez fizessem um bom estrago. Olhou para a adaga de prata na mão esquerda, e pensou. Mesmo se saísse com vida, do quarto, o caminho até a saída era complicado, e não podia quebrar uma dívida. Nesse momento sentiu um cheiro vindo da cama, e não era cheiro de profano, prazer ou desilusão, deve ser a Daisy.
- E eu posso sair... ? – Arriscou.
- Se deixar a garota... - Valentino pensou por um minuto, movimentou o pescoço para estrala-lo - Talvez. - O olhar do demônio, não permitia um minuto de pensamento lúcido.
- É, seria o mais inteligente a fazer... - Cão sentiu um olhar cortante vindo de suas costas, obviamente de Denize, o choro e o soluços aumentaram, dessa vez em tom de desistência e mais desespero, comprovando a origem do olhar.
- Sim, Seria.
A situação não era nada cômoda, Cão tinha um demônio a sua frente, e mais três no mesmo quarto, som de choro se misturava ao de gemidos de prazer, cheiro de seu sangue ainda tomava as suas narinas, mas já não tinha gosto em sua boca, enxofre também permeava o ambiente, provando que o demônio estava preparado para lutar, não tinha como fugir pelos corredores longos, apertados e confusos, a sala possuía uma janela, mas provavelmente estava selada pela magia do demônio, e ele ainda tinha uma obrigação a cumprir, passível das punições do Fosso, e também tinha o recente fato de que não podia deixar o poder em desenvolvimento de duas Abridoras nas mãos de um demônio, eles costumam servir a propósitos maiores, e esses propósitos nunca são saudáveis e agradáveis. Cão sacudiu a cabeça em desistência, agradeceu a Deus por sua memória e pediu um rápido perdão por seus muitos pecados. Ele jamais deixaria de pagar uma dívida.
Cão levou a arma as costas, e permaneceu com uma mão ali por algum tempo enquanto pensava, sem encontrar aparente resposta nos pensamentos, voltou e guardou a arma na cintura, próxima da virília.
- Sabe... - disse tentando soar o mais calmo possível, sem sucesso - Eu vou fazer o que é certo - completou abaixando a cabeça e levando as mãos com a faca para traz das orelhas.
- Isso. Faça isso... fadinha. - Disse Valentino com o tom da voz ainda mais grave, as demoníacas succubos gritaram e gemiam em um frenesi de prazer.
Valentino se aproximou triunfante de Cão, dirigindo-se a porta e a Denize.
Cão sorriu. Um sorriso de desistência e desespero, do tipo que pessoas fazem quando estão prestes a fazer algo absurdamente idiota e igualmente necessário.
Em um rápido movimento Cão fez três cortes longos no meio do peito de Valentino com a adaga de prata e saltou por cima do demônio que gritava em fúria, pulou na cama onde estavam as garotas, passou a faca pelo ar fazendo um único corte contínuo nas três succubos, e enfiando na cabeça da terceira. Embaixo dos corpos babados e excitados encontrou a pequena Daisy, de olhos arregalados e assustados. As outras mulheres em completo frenesi de prazer e loucura, ignoraram tudo e continuaram com sua orgia.
Cão puxa Daisy para se levantar ela o abraça assustada, e é jogada para traz com um grito de agonia de Cão quando sentiu os dentes e garras de Valentino entrando em sua carne. Enfiou a adaga de prata no corpo do demônio que começa a morde-lo no pescoço, ele não recuou um centímetro sequer, pelo contrário, infincou os polegares nos dois braços de Cão, agarrando e o imobilizando, cão gritou.
As succubus começaram a se aproximar rindo e gritando, rebolando em um ritmo inaudível, começaram a alisar Cão, e logo, a morder e arranhar também. Cão gritava, imóvel. Valentino ria e se deliciava com o sangue.
Vendo a cena, Denize levantou-se do chão correndo e pulou no pescoço de Valentino, o demônio se chacoalha afastando-se da cama, e no brusco movimento, na melhor das hipóteses, quebrando pelo menos um dos braços de Cão, enquanto Denize é lançada do outro lado do quarto. O demônio volta a rir, e as succubos se ocupam novamente com a orgia em cima da cama. Daisy chorava, mais do que nunca, Daisy chorava.
Valentino ria cada vez mais alto, o sexo, a dor, o sangue, o profano, a decadência, as esperanças frustradas, a liberdade podada e a vindoura morte, compunham uma bizarra obra de arte para ele, mas ainda pode ficar melhor, ele pensava, e ele sabia exatamente como.
- Ei! Cão, ainda me ouve? – vociferava o demônio – Há há há há, observe fadinha! Olhe as que você veio tirar de mim! – Disse Valentino com sua voz de quase trovão, enquanto jogava Cão no chão, segurando-o pelos ossos e músculos expostos na ferida do braço não quebrado, e então virou-se para Denize sangrando desacordada, e logo depois virando de novo para as succubus arranhando Daisy, fazendo-a sangrar lentamente.
Cão gritava e na medida do possível, o que era bem pouco, se debatia, até que por fim desistia, até que por fim, desistiu. Lutar com um demônio despreparado estava entre suas piores idéias, e provavelmente, a última. Abaixou a cabeça em tom de desistência, ouvindo apenas os gritos de dor da pequena Daisy, os de prazer das succubos, os gemidos das humanas hipnotizadas, e as risadas de Valentino que retirava prazer e força da macabra pintura que a realidade ali pintava.
E então, o nariz de cão sentiu um cheiro que o chamou atenção, era ferroso, doce e azedo. Era sangue. Levantando a cabeça, viu Denize ao seu lado, com a faca prateada melada em sangue em uma das mãos e um ferimento aberto pela própria faca, sangrando na outra. Era o sangue doce de Denize, e o sangue do demônio que estava ali. Cão usou a pouca força que ainda tinha para empurrar Valentino e cair nos braços de Denize. Valentino riu ainda mais.
- O que faz ai imundo? – O demônio sorria – vai abraça-la antes do fim? Que lindo. - Valentino levantou Cão pelo pescoço, e chutou Denize para mais longe – Não vou mata-lo ainda, vou domar o seu espírito fadinha, vou te ensinar torturas, e você vai tirar a vida das duas quando for a hora delas, que tal?
- Não. – Disse cão. Sua voz soou calma, não uma calma forçada, ou aparente, Valentino era um demônio sabia quando as pessoas fingiam ou mentiam. E esse não era o caso. a calma era real, Cão falou como alguém que tem tudo sob controle. Valentino desfez o sorriso. Olhou para Denize, havia uma terrível ferida exposta no pulso da garota, como uma mordida que sangrava sem interrupção,
Cão levantou o rosto e sorriu, um sorriso doentio, seus dentes melados em sangue de demônio e humano. Valentino vacilou por um momento, Cão podia sentir, sentia todos na sala, sentia tudo, ouvia tudo, via tudo. E o vacilo do demônio tinha um cheiro especial. Parecia, Medo.
Com a adaga prateada, Cão fez mais dois cortes no peito do demônio, sorriu e cortou a mão que o segurava fora. O demônio olhou para o próprio peito, os cortes compunham uma figura, uma estrela. Cão viu a reação do demônio ao ver os cortes, era medo. Chutou o peito de valentino, que caiu no chão, montando por cima dele, Cão completou, fez mais um corte circular, completando a figura de um pentagrama. As succubos gritaram, e se encostaram nas paredes, subindo-as, Cão sorriu, respirou fundo e gritou a plenos pulmões:
- "Exorcízo te, omnis spíritus immúnde, in nómine Dei + Patris omnipoténtis, et in nómine Jesu + Christi Fílii ejus, Dómini et Júdicis nostri, et in virtúte Spíritus + Sancti, ut discédas ab hoc plásmate Dei N.“... – Valentino chorava imóvel – “Quod Dóminus noster ad templum sanctum suum vocáre dignátus est, ut fiat templum Dei vivi, et Spíritus Sanctus hábitet in eo” .. – As succubos berraram ainda mais alto – “Per eúmdem Christum Dóminum nostrum, qui ventúrus est judicáre vivos et mórtuos, et sæculum per ignem. R. Amen." - E baixou a adaga no coração do demônio. Valentino deu um último grito de dor e fúria, e se desfez em pó. Cão lambeu a adaga e sorria, ainda imerso no louco frenesi que sangue o causava. E dirigiu seu olhar para a garota que jazia imóvel com mais sangue delicioso pulsando em seu corpo, parou a meio caminho, bateu a própria cabeça na parede, até que só a completa e cômoda escuridão o receber.
Parte III – Pos Escritum
Cão abriu os olhos em um lugar conhecido, o cheiro de livros velhos e o aroma levemente adocicado e enviadante acusava a presença de fadas. Estava em casa. Tentava recompor a memória, se lembrou das meninas, da peitos-de-dezenove-e-meio, do Bardo, do demônio, da loucura embriagante do sangue, de querer mais.... levantou-se em um pulo da cama, e correu até a biblioteca, Jarede não estava lá, correu pela casa desesperado e entrou correndo na cozinha, deu de cara com Denize que ensinava Jarede a fazer pão, Daisy estava sentada assistindo desenho animado no balcão da cozinha. Cão respirou fundo.
Imediatamente Denize deixou tudo de lado e pulou em cima de Cão beijando-o no rosto e o abraçando sem se importar com característico mal cheiro. Cão olhou a atadura no pulso de Denize, e sentiu vontade de se desculpar. Mas antes o chefe, Jarede o olhou com sinal de aprovação, havia até orgulho no rosto da fada. Cão se sentiu ainda mais feliz.
- Parabéns Cão! - Disse Jarede dando tapinhas nas costas de Cão e aproveitando estrategicamente para limpar as mãos nas roupas do ajudante - Lembra do caso dos Moura? - Cão fez que sim com a cabeça enquanto afastava Denize que estava colada nele - Esta resolvido, o roubo foi feito por aquele demônio, parece que você derrotou um dos 72 da Goetia, ainda não identifiquei sua identidade, mas o artefato roubado dos Moura, servia para convocar demônios, isso aliado a capacidade dessas duas, quebraria o selo natural da invocação, o resto, você já pode imaginar... – Jarede respirou fundo – Vocês resolveram um grande caso. – Jarede balançou a cabeça com uma feição que Cão comparou a de um jovem ao ver uma moça na rua e dizer, gostosa. Então provavelmente havia resolvido um problema grande mesmo - Ainda não recuperamos o artefato, mas sem as duas, não é perigo.
Cão deu de ombros, balançou a cabeça, seguiu até o bar da casa, pegou uma garrafa de conhaque, e deitou-se no sofá.
- Cão... - interrompeu Jarede - E o meu café?
Parte IV – Que fique claro, esse NÃO é o Fim.
Para Déborah
minha Calíope.
Hoje a musa já esta comprometida, porém é justo manter a dedicatória.
Segue a Them Bones!
Ahhhh *-*
ResponderExcluirvaleu por manter a dedicatória
ainda tenho que reler esses contos..
beeijos