[Esse é um conto bem antigo que fiz por brincadeira, mas como criação que é, mesmo sendo feio e meio torto, é objeto de amor.]
“a noite cai em São Paulo , trazendo uma névoa que não é chuva, mas molha e se lamenta”
- Verso sobre São Paulo, a terra da garoa
Parte I – O fantasma do velho Império
A garoa cai tenra e implacável sobre a cidade, inaudível e delicada, como sempre cai.
O som das sirenes policiais podiam ser ouvidos a longas distâncias, algumas pessoas, transeuntes e curiosos já começavam a se aglomerar em volta da faixa de limite policial, a notícia se espalhava e dispersava em meio a multidão aglomerada em pequenos nichos ao longo da Av. Paulista, o assunto, sempre o mesmo. O MASP havia sido invadido.
A polícia se esforçava para manter os civis distantes e sem intervenção, fardas se moviam de um lado para o outro em meio à garoa e declarando palavras de ordem, funcionava com a maioria. Mas não perceberam quando do meio da multidão, um homem trajando um sobretudo marrom caminhava lentamente, mas sem interrupções, rasgando entre os transeuntes curiosos, rumo ao outro lado da faixa policial, o homem parecia flutuar e escorregar por cima do asfalto molhado, seus passos não faziam som. Um jovem policial, aparentando vinte e poucos anos, esboçou um movimento para que o homem parasse, o estranho então levantou a mão em um respeitoso sinal de “não”, mas era mais que isso. O jovem policial fez um rosto de desentendido, balançou a cabeça em negativo, em seguida em positivo, lambeu os lábios e percebeu que tinha sede, por fim, o homem prosseguiu sem interrupções, passando ao lado do sedento policial, atravessando a fita amarela de limite.
O estranho transitou por longos minutos, tocando e se dirigindo a diversas partes da estrutura externa do MASP, sempre aplicando um olhar atento. Apenas depois de aparentar ter algumas conclusões, o estranho foi percebido e interceptado por um grupo de três policiais, que estranharam não terem o percebido antes.
– Hei! – sinalizou um dos policiais, o homem não aparentou interesse – Hei cara! – o estranho ainda reservou-se desinteressado.
Um outro policial do grupo esticou o braço na intenção de segurar o braço do estranho.
– Não! – gritou uma voz atrás do grupo de policiais – Não toque nele – prosseguiu a voz – Acredite, você não ia querer – A voz vinha de um velho homem, baixo e fardado, em algum ponto do passado remoto aquele homem devia ter ficado bem vestido com aquela farda, no presente momento, não ficava.
– Mas senhor... – ameaçou um dos policiais.
– Mas nada, saiam!
– Sim senhor major. – disseram os três policiais em unisono e em um fôlego só.
O estranho homem olhava o major com interesse esboçando um sorriso misto de aparente orgulho e alegria, formulou melhor o sorriso para ser mais respeitoso e caminhou lentamente na direção do baixo major dentro da farda.
– Major hein. – resmungou o homem estranho de sobretudo marrom, o sorriso respeitoso voltara forma mista de orgulhoso e alegria.
– As coisas aqui mudam mais rápido que você Jarede – disse o Major sorrindo e esticando a mão em cumprimento e remexendo um dos bolsos da farda com a outra.
– É verdade Kremilin, vocês e seu mundo mudam rápido de mais – completou Jarede esticando a mão e cumprimentando o major, que parecia feliz por encontrar um isqueiro azul em um dos bolsos da farda – Achei que alguém da sua posição não sairia do escritório.
– Quando fui notificado sobre esse incidente achei que você viria – o homem baixo acendeu um cigarro, deu uma longa tragada que consumiu o cigarro quase até a metade, e completou – É melhor ter alguém aqui para passar o pano, afinal, nada te para não é senhor detetive.
– É... – respondeu Jarede voltando o rosto e sua atenção novamente para o MASP – O que foi roubado Kremilin?
– Aparentemente nada, o arrombador entrou pela porta da frente, tomou cuidado ao abrir a fechadura, fez um tour pelo museu, e por fim quebrou o vidro de uma janela no segundo andar, disparando o alarme. Ele fugiu e encontramos um corpo – o Major estava acendendo um segundo cigarro.
– Um corpo?
– É, sem identificação, aparentemente é um mendigo que vaga essas redondezas. Alguns dos meus rapazes já encanaram ele algumas vezes. Mas ele sempre volta, bom, não agora.
– Posso vê-lo Kremilin? – Jarede continuava a fitar a estrutura do MASP, parecendo cheirar o ar.
– Claro, já esta no carro do IML, me siga – O Major Kremilin acendia o terceiro cigarro.
Jarede conhecia Kremilin à alguns anos, o salvou de um incidente grande envolvendo uma menina que materializava seus medos, nessa época o major ainda era só um soldado, e estava a pouco tempo na polícia. Ainda se encontraram algumas vezes, sempre em casos bizarros ao longo dos anos que se seguiram. Assim, como Kremilin estava sempre envelhecendo e Jarede sempre com a mesma aparência, ao longo dos anos, Kremilin acabou por descobrir da boca do próprio Jarede a verdade. Kremilin é então um dos poucos mortais que conheceram uma fada pura e não enloqueceram.
O carro do IML, um furgão Branco com letras azuis estava estacionado ao lado do prédio do MASP, o major Kremilin dispersou os legistas que estavam com o corpo e conversavam sobre algum programa de tv. E chamou Jarede para se aproximar.
Jarede se aproximou do corpo que estava dentro de um saco preto, Kremilin colocou luvas brancas de látex e abriu o saco, estava fumando o quarto cigarro, Jarede olhou o corpo, um velho loiro de cabelos aparados e barba rala, vestindo roupas sujas, aparentemente forte.
– Parece que foi um tiro, talvez com bala dum-dum – comentou Kremilin, Jarede não pareceu interessado, analisava e parecia farejar o ar, sobre o cadáver, Kremilin deu de ombros, voltando sua atenção para o cigarro.
– ... Um Wardjan... – resmungou Jarede – Pelo arco, isso é um Wardjan!
– Um o que? – perguntou Kremilin com o rosto contorcido e em tom de “que porra é essa?” enquanto se preparava para pegar o quinto cigarro.
– Um Wardjan, é uma espécie de guardião convocado – Jarede virou o cadáver, e observou atentamente o ferimento, que era incisivo na frente, mas destroçou a traseira do abdômen, rompendo a espinha dorsal, um tiro jamais faria esse estrago, passou o dedo pelo ferimento, a pele era mais fibrosa, definitivamente era um Wardjan, e eles não morriam com um tiro.
– Não toca nele sem luvas! – bronqueou Kremilin, ameaçando intervir na observação de Jarede.
– Não se preocupa, não tenho digitais, e meu toque é leve, nem mesmo vai parecer que o toquei. – respondeu desatento analisando milimetricamente a superfície da pele do cadáver, Kremilin pensou em quantos casos já pegou onde algo ou alguém havia sido tocado sem deixar vestígios de digitais, e em quantos deles poderiam ter relação com Jarede.
– O que você ta procurando Jarede? – Perguntou Kremilin observando a cena e jogando fora os restos do quinto cigarro e se preparando para acender o sexto. Refletindo sobre o quanto era surreal ter uma fada na frente do MASP analisando sem digitais o corpo de um Wardjan assassinado, seja lá o que isso for.
– Ahá! – Comemorou Jarede – Econtrei o signo do invocador.
– Encontrou o oque?
– Toda criatura convocada que esteja sob controle, é mantida assim para executar uma tarefa e para isso carrega um signo do invocador, um símbolo de controle, que mantém a criatura obediente ao invocador. E eu acho que encontrei o desse aqui e... – Jarede repentinamente ficou pálido por completo, a respiração ficou ofegante, seu corpo tremia. – Pelo Arco e o Fosso... não pode ser....
Kremilin que já se encontrara varias vezes com Jarede, e até mesmo via a fada como um amigo, nunca, jamais, o vira perder a postura, mesmo diante dos mais bizarros e excêntricos casos, nesse momento, Jarede perdeu a compostura. Medo é o que estampava seu rosto.
– O que aconteceu Jarede? Tudo bem? – Kremilim falou assumindo a sua voz de policial, uma voz firme, doce, reverberante, uma voz de amigo, uma voz que ao longo dos anos aprendeu a empregar no contato com vítimas de situações graves.
Jarede cobriu o corpo do mendigo loiro Wardjan. Sentou-se na calçada próxima, levou a mão á cabeça e a esfregava no rosto e nos cabelos aparados com força.
– Eu descobri quem foi o invocador... não, acho que “fabricante” é um termo mais correto. – Kremilim aparentava uma confusão grandiosa, e acendia o sétimo cigarro – Aquele corpo, é sim o corpo de um Warjan, mas não apenas isso... Normalmente, Wardjans são usados como guardiões, soldados, ou guarda-costas, são mais fortes, mais saldáveis não se cansam, se alimentam de energia, portanto não precisam comer... Mas, ouve um tempo em que um império os fabricou em massa. Eles eram chamados de Wardjandobermanns... – Jarede parou por um momento, abaixou a cabeça, respirou e olhou Kremilin nos olhos, um olhar de dor e suplício – Dê uma olhada você mesmo, irá reconhecer o signo do invocador... aliás... a marca do fabricante, esta na espinha, pouco abaixo do pescoço.
Kremilin se dirigiu ao corpo, levantou os restos da camiseta que o Wardjan usava, e ali estava o símbolo, ou a “marca do fabricante” como se referiu Jarede. Kremilin ficou branco. Suas pernas fraquejaram, entendeu então o terror de Jarede. A marca do fabricante era uma suástica NAZISTA.
Kremilin sentou-se na calçada ao lado de Jarede acendeu diversos cigarros repetidamente, perdeu a conta de quantos, e a garoa, agora uma chuva rala, continuava a cair, tenra e implacável...
Continua Nesse Post.
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